O sol escaldante surge no horizonte, banhando a paisagem com um brilho dourado. Gazelas, rinocerontes, suricatos, girafas, zebras e outras espécies da savana se dirigem para conhecer o novo rei da selva, apresentado a todos por Rafiki. Quem assistiu ao filme O Rei Leão (seja o clássico de 1994 ou a versão de 2019) certamente reconhece a cena. No entanto, para que a vida selvagem não permaneça apenas no mundo da ficção, foi criado o Dia Mundial da Vida Selvagem.
Instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 3 de março, essa data tem como objetivo conscientizar sobre a urgência de preservar as espécies selvagens e seus habitats. Ela também marca a assinatura da Convenção sobre Comércio Internacional das Espécies da Flora e Fauna Selvagens em Perigo de Extinção (da Cites), em 1973. O Brasil é signatário desse tratado, que regula o comércio de animais e plantas selvagens, além de seus derivados.
“A criação de uma data para celebrar a vida selvagem em nível mundial nos proporciona uma oportunidade de reflexão e ação, lembrando a todos nós da importância desse tema vital para o futuro do planeta”, avalia Marta Brito Guimarães, presidente da Comissão Técnica de Animais Selvagens e Pets Não Convencionais do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV-SP).
Médico-veterinário, professor da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador do projeto Biorrepositório Nacional da Biodiversidade (Bionabio), Ricardo Augusto Dias considera a iniciativa positiva, mas ainda tímida diante da magnitude do problema. “Apesar de sua grande relevância para nossa área profissional, acredito que a data seja pouco conhecida pelo público em geral e até mesmo por alguns médicos-veterinários”, pondera.
O tráfico no Brasil
O Brasil tem a maior biodiversidade do planeta e, por isso, se tornou um dos principais alvos de criminosos que enxergam na riqueza natural do País uma oportunidade de lucro.
Segundo a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), cerca de 38 milhões de animais silvestres são retirados ilegalmente da natureza no Brasil a cada ano. Esse número é quase o dobro da população de Minas Gerais, o segundo estado mais populoso do País. De acordo com o Censo de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o estado de Minas Gerais possui 20 milhões de habitantes.
Conforme divulgado pela Renctas, a cada dez animais traficados, nove morrem antes de chegar ao comprador final, evidenciando a brutalidade dessa prática. A retirada de animais de seu habitat compromete toda a cadeia alimentar e o equilíbrio natural do meio ambiente.
Meio ambiente
O tráfico não é o único desafio enfrentado pelos animais silvestres, tanto no Brasil quanto globalmente. A degradação dos habitats naturais e a poluição também representam ameaças significativas às espécies. O zootecnista pós-graduado em Bem-Estar de Animais Silvestres e Exóticos, Fernando Petroni, enfatiza que lutar pela vida selvagem é, na verdade, lutar pela preservação da própria humanidade.
“Não há um planeta separado para os humanos e outro para os demais seres vivos. Todos compartilhamos o mesmo ambiente, e sua degradação compromete diretamente nossa qualidade de vida. Proteger a biodiversidade é garantir o equilíbrio dos ecossistemas e as condições necessárias para a continuidade da vida na Terra”, alerta.
Especializado no atendimento de animais silvestres e exóticos, o médico-veterinário André Grespan ressalta que todos os animais, mesmo os menos visíveis, desempenham papéis fundamentais. “Preservar a vida selvagem não significa apenas proteger espécies carismáticas como onças, araras e tartarugas-marinhas, mas sim garantir o equilíbrio natural que assegura ar puro, água potável, solo fértil e um planeta habitável para as futuras gerações”, afirma.
Papel dos médicos-veterinários e zootecnistas
O professor da USP, Ricardo Augusto Dias, esclarece como médicos-veterinários desempenham um papel crucial na preservação da vida selvagem, especialmente no atendimento a animais silvestres. “Em emergências, é fundamental prestar atendimento ao animal, desde que haja recursos e condições adequadas para isso. Se o animal estiver saudável, ele deve ser devolvido imediatamente ao local de onde foi retirado. No entanto, o ideal é que o animal seja o menos perturbado possível durante esse processo”, afirma.
Os zootecnistas também desempenham papel essencial na proteção de espécies ameaçadas de extinção, como destaca Fernando Petroni. “Sua expertise em nutrição, manejo, bem-estar e genética contribui diretamente para o desenvolvimento de programas eficazes de conservação e reprodução de espécies em risco. Além disso, sua atuação na formulação de dietas adequadas, no aprimoramento das condições de cativeiro e na gestão das populações pode ser decisiva para a manutenção da biodiversidade.”
Vencedor do Prêmio “Max Ferreira Migliano” de 2024, promovido pelo CRMV-SP, André Grespan ressalta a importância do médico-veterinário além do atendimento clínico, enfatizando sua relevância em instituições que recebem animais silvestres. “Em zoológicos, centros de triagem e reabilitação, e até em clínicas veterinárias particulares, os médicos-veterinários desempenham um papel fundamental na promoção da saúde preventiva, nutrição adequada e bem-estar animal, assegurando que esses animais tenham qualidade de vida e possam desempenhar seu papel ecológico.”
Devolvidos para a natureza
Os Centros de Triagem de Animais Silvestres (Cetras ou Cetas) são unidades do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) responsáveis pelo acolhimento de animais silvestres apreendidos, resgatados ou entregues pela população. Nessas unidades, os animais passam por avaliação, triagem, marcação, exames, tratamento e reabilitação até estarem prontos para ser devolvidos à natureza.
De acordo com dados fornecidos pela Secretaria do Meio Ambiente, Infraestrutura e Logística do Estado de São Paulo (Semil), em 2024 o Cetras-SP recebeu 8.567 animais, sendo que 60% desse total foram vítimas do tráfico ilegal.
Até o momento, 75% dos animais reabilitados foram devolvidos ao seu habitat natural, enquanto o restante foi encaminhado a empreendimentos de fauna devidamente cadastrados. A decisão sobre a destinação final de cada animal leva em consideração diversos fatores, como seu estado físico, comportamental e biológico.
O tempo necessário para a reabilitação varia de acordo com a espécie e as condições individuais dos animais, podendo durar de uma semana até dois anos.
Conservação de espécies
Os zoológicos desempenham um papel crucial na conservação da biodiversidade, acolhendo animais que não têm chance de retorno à natureza, promovendo pesquisas científicas e oferecendo educação ambiental. Fabrício Braga Rassy, médico-veterinário chefe do Zoológico de São Paulo, destaca a importância dessa atuação.
“Anualmente, cerca de cem mil alunos e professores visitam a instituição, sendo 60% deles oriundos da rede pública e beneficiados com gratuidade no acesso”, afirma.
Rassy também ressalta a contribuição do zoológico em 27 programas de conservação, realizados em parceria com organizações sociais e com o Governo do Estado de São Paulo. “Com seus 66 anos de história, o zoológico é pioneiro na manutenção e reprodução de espécies ameaçadas de extinção. Fomos o primeiro zoológico das Américas a obter sucesso reprodutivo com a arara-azul-de-lear”, destaca.
A arara-azul-de-lear, nativa da caatinga no nordeste da Bahia, é considerada em perigo de extinção pela União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN).
Em 2024, o zoológico inaugurou um novo espaço de 900 metros quadrados para a conservação da ararinha-azul, com o objetivo de oferecer altos padrões de cuidado e promover sua reprodução. O projeto visa, no futuro, possibilitar o retorno desses animais à natureza.
Caso de sucesso
Criado na década de 1980 por um grupo de estudantes de oceanografia da Universidade Federal do Rio Grande, o Projeto Tamar (uma combinação das palavras “tartaruga” e “marinha”) é um exemplo global de sucesso na preservação da vida selvagem.
Atualmente, o projeto está presente em 23 localidades, com alguns pontos abertos ao público, como o de Ubatuba, em São Paulo. Em média, o Tamar protege cerca de 25 mil ninhos de tartarugas por ano.
“Atuamos com a clínica e reabilitação de tartarugas, realizamos necropsias em animais encalhados para entender as causas desses encalhes e as ameaças que enfrentam. Além disso, coletamos dados importantes como sexo e idade, que nos ajudam a direcionar as ações de conservação de forma mais eficiente. Também participamos de pesquisas de campo, como a coleta de amostras biológicas”, afirma Gabriela Dutra, médica-veterinária que integra a equipe do Projeto.
Das sete espécies de tartarugas marinhas existentes no mundo, cinco podem ser encontradas no litoral brasileiro. “As tartarugas fazem parte da cadeia ecológica, atuando como presas e fornecendo alimento para predadores marinhos e terrestres, o que ajuda a controlar populações e evitar desequilíbrios na cadeia alimentar marinha. Como animais migratórios, elas percorrem grandes distâncias e, ao longo dessa jornada, transferem energia e nutrientes entre os ambientes marinhos”, explica.
Além disso, as tartarugas também desempenham um papel fundamental no solo. “Nas áreas de reprodução, elas promovem a ciclagem de nutrientes. Nem todos os ovos eclodem, e parte desse material se decompõe, enriquecendo o solo e beneficiando a vegetação costeira”, conclui Gabriela.
Clique aqui e saiba mais sobre o Projeto Tamar.
Como Denunciar o Tráfico de Animais
Casos de urgência: Acione a Polícia Militar no 190;
Guarda Civil Metropolitana Ambiental: 156 ou 153;
Polícia Militar Ambiental: https://www.policiamilitar.sp.gov.br;
Outras situações: Contate o Ibama pela linha verde, 0800-618-080 ou e-mail linhaverde.sede@ibama.gov.br .
Tanto caçadores, quanto comerciantes e compradores de animais silvestres de criadores ilegais, cometem crime ambiental, e estão sujeitos à multa e pena de reclusão.
