Leishmaniose Visceral

Orientações sobre diagnóstico, manifestações clínicas e ações de prevenção e controle da doença
Texto: Comissão Nacional de Saúde Pública Veterinária / CFMV
Foto: Pixabay
  1. Sobre a doença

A leishmaniose visceral (LV), conhecida popularmente por calazar, é uma doença infecciosa que acomete os animais e o homem. Essa zoonose tem como agente etiológico nas Américas o protozoário Leishmania infantum, a mesma espécie que causa a doença na Europa. O principal reservatório do parasito em áreas urbanas no Brasil é o cão. O agente é transmitido aos seres humanos e aos animais por meio da picada de fêmeas infectadas do inseto denominado flebótomo. Esses insetos se infectam no momento do repasto sanguíneo em cães infectados.

A LV humana é considerada pela Organização Mundial de Saúde como uma das principais doenças negligenciadas do planeta, tendo ainda um forte componente social, onde a incidência em populações de baixa renda e a faixa etária, com grande concentração em crianças, determinam um desafio à Saúde Pública mundial.

  1. Epidemiologia

Na região das Américas, 96% dos casos dessa zoonose são reportados no Brasil, onde a enfermidade é endêmica e ocorre em todas as suas cinco macrorregiões. No ano de 2017, registraram-se casos em 23 dos 27 estados da Federação. Estão livres de casos autóctones da doença em humanos apenas os estados do Amazonas, Acre e Rondônia. Os estados com maior frequência de casos nesse ano foram: Maranhão, Pará, Ceará, Tocantins, Bahia, Piauí e Mato Grosso do Sul, que concentram 77% dos casos registrados no País.

Em 2017, foram registrados no Brasil 4.220 casos novos da doença e 316 óbitos. A doença ocorre em todas as faixas etárias, mas com incidência maior em crianças de 0 a 4 anos. Já a letalidade é maior em crianças menores de 1 ano e nos adultos maiores que 50 anos.

A ocorrência dos primeiros casos humanos autóctones da LV em uma localidade é precedida por uma transmissão sustentada em cães. Estudos realizados no Brasil demonstram uma associação positiva entre a ocorrência da leishmaniose visceral canina e humana.

A doença ocorre na população canina de 25 dos 27 estados da Federação. Apenas os estados do Amazonas e do Acre não possuem registro de casos autóctones de leishmaniose visceral canina (LVC).

A infecção de cães pela Leishmania infantum tem uma prevalência muito variável no Brasil e pode atingir até 60% dos animais de uma localidade em um município. Trata-se de uma doença letal para esses animais e de manejo complexo.

Diante desses fatores, é possível afirmar que a leishmaniose visceral canina é um dos principais problemas de saúde veterinária para os cães e com alta relevância para a saúde pública no Brasil.

  1. Manifestações clínicas

3.1. Leishmaniose visceral humana: é uma doença de evolução relativamente lenta, mas que pode agudizar a depender das condições do paciente. Caracteriza-se por febre de longa duração, perda de peso, astenia, adinamia, hepatoesplenomegalia e anemia, dentre outras manifestações clínicas. Os casos mais graves apresentam icterícia, edema, infecções bacterianas secundárias e hemorragias, como a epistaxe e a gengivorragia. Quando não tratada, pode evoluir para o óbito em mais de 90% dos casos.

3.2. Leishmaniose visceral canina: os cães infectados por L. infantum podem permanecer sem sinais clínicos por um longo período de tempo e estima-se que aproximadamente 50% desses não apresentem sinais clínicos da doença. Nesses animais, a doença se manifesta de forma bastante variável e possui evolução lenta. Caracteriza-se pelos seguintes sinais clínicos: febre, perda de peso, astenia, adinamia, mucosas hipocoradas, alterações oftálmicas, linfadenopatia, onicogrifose, hepatoesplenomegalia e alterações cutâneas; tais como: lesões, alopecia localizada ou generalizada, descamação furfurácea, eczema, úlceras e hiperqueratose. Com menor frequência observa-se descarga nasal, diarreia, vômitos, desidratação e atrofia muscular. Na fase mais avançada da doença, é possível observar hemorragia intestinal, epistaxe, edema, paresia dos membros posteriores, inanição e morte, geralmente devido à insuficiência renal ou hepática.

  1. Diagnóstico

4.1. Leishmaniose visceral humana: o diagnóstico baseia-se na epidemiologia (deslocamento para áreas com transmissão da doença em cães ou humanos), na clínica e no diagnóstico laboratorial específico, geralmente testes rápidos imunocromatográficos que detectam anticorpos específicos em pequenas amostras de sangue ou soro sanguíneo. O diagnóstico laboratorial específico também é realizado com relativa frequência por meio da visualização direta do parasito em aspirados de medula óssea.

4.2. Leishmaniose visceral canina: o diagnóstico segue a mesma lógica do que é feito para os humanos. A diferença é que nos cães o diagnóstico também é feito em animais assintomáticos, o que dificulta, porque os testes diagnósticos sorológicos possuem um desempenho inferior nesses animais. O diagnóstico laboratorial utilizado na Saúde Pública é sorológico e utiliza dois testes em série: o teste rápido imunocromatográfico em plataforma de duplo percurso (TR-DPP) na triagem e o Ensaio Imunoenzimático (Elisa) como confirmatório, ambos produzidos pelo laboratório público Bio-Manguinhos/Fiocruz. Na clínica veterinária, outros testes e técnicas são utilizados tais como: Elisa; Imunofluorescência Indireta (IFI); parasitológico direto de lesões de pele, punção de linfonodo ou de aspirado de medula óssea; reação de cadeia de polimerase (PCR); entre outros.

  1. Ações de vigilância, prevenção e controle

As estratégias de Saúde Pública preconizadas pelo Ministério da Saúde para a vigilância, prevenção e controle da LV no Brasil são direcionadas ao homem, o ambiente, o vetor e o reservatório animal e devem ser realizadas de forma integrada e focalizadas nas áreas de maior risco.

Estão centradas no diagnóstico precoce e tratamento adequado dos casos humanos, vigilância e monitoramento canino com eutanásia de cães com diagnóstico sorológico ou parasitológico positivos, vigilância entomológica, saneamento ambiental, controle químico com inseticida de efeito residual e medidas preventivas direcionadas ao homem, ao vetor e ao cão. Essas ações estão detalhadas a seguir:

5.1. Diagnóstico oportuno e tratamento dos casos humanos: as Secretarias Municipais de Saúde, com o apoio das Secretarias de Estado de Saúde, têm a responsabilidade de organizar a rede básica de saúde para suspeitar, assistir, acompanhar e/ou encaminhar os pacientes com LV à referência hospitalar;

5.2. Vigilância e controle do reservatório animal: A identificação de animais infectados, tanto para fins de controle como para fins de definição de áreas com maior risco de transmissão da doença, é realizada por meio de inquéritos sorológicos censitários ou amostrais de cães. É importante que se busque a identificação oportuna dos animais infectados, mesmo assintomáticos. Os animais infectados devem ser submetidos à eutanásia pelos órgãos de saúde pública, observando a Resolução do CFMV nº 1.000, de 11 de maio de 2012. Do ponto de vista individual, como medida voltada para o bem-estar do animal, existe a possibilidade de os cães infectados serem submetidos a tratamento por um médico veterinário com medicamentos registrados no Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) para esse fim.

5.3. Tratamento de cães infectados pela L. infantum: o tratamento da LVC no Brasil deve obedecer ao disposto na Portaria Interministerial nº 1.426/2008, dos Ministérios da Saúde e Mapa. Segundo a norma, o tratamento de cães só será permitido com medicamentos registrados no Mapa e que não sejam utilizados no tratamento de seres humanos com a doença. Atualmente, existe apenas um produto que atende a essas condições e que está sendo comercializado no Brasil, o Milteforan, cujo princípio ativo é a miltefosina. Ressalta-se que o tratamento dos cães não se configura como uma medida de saúde pública para controle da doença e, portanto, trata-se única e exclusivamente de uma escolha do responsável pelo animal, de caráter individual. Dessa forma, é imprescindível que se cumpra o protocolo de tratamento descrito na rotulagem do produto, respeitando-se a necessidade de reavaliação clínica, laboratorial e parasitológica periódica pelo médico veterinário, a necessidade de realização de novo ciclo de tratamento, quando indicado, e a recomendação de utilização de produtos para repelência do flebotomíneo, inseto transmissor do agente causal da LVC.

A Instrução Normativa nº 35, de 11 de setembro de 2017, estabelece os procedimentos para a comercialização das substâncias sujeitas a controle especial, quando destinadas ao uso veterinário e dos produtos de uso veterinário que as contenham. A miltefosina, princípio ativo do produto Milteforan, consta na lista das substâncias sujeitas a controle especial disposta na referida Instrução Normativa. O controle da comercialização do produto é feito pelo Mapa, por meio do registro no Sistema Integrado de Produtos e Estabelecimentos Agropecuários (Sipeagro), do Mapa. Nesse contexto, vale destacar que o médico veterinário é o único profissional autorizado a prescrever o medicamento, tratar e acompanhar o animal em tratamento.

Em uma nova determinação do Mapa, foi publicada por meio da Instrução Normativa (IN) nº 55 de dezembro de 2018 e altera a IN nº 35, de 11 de setembro de 2017, que trata dos procedimentos para a comercialização das substâncias sujeitas a controle especial, quando destinadas ao uso veterinário e dos produtos de uso veterinário que as contenham.

5.4. Vigilância entomológica e controle químico do vetor: a vigilância entomológica consiste na captura sistemática ou pontual dos vetores da doença, os flebótomos, com intuito de: (a) auxiliar na identificação do local provável de infecção, (b) avaliar a receptividade das áreas para a transmissão da doença, (c) avaliar a sazonalidade do vetor e (d) auxiliar na definição de áreas com maior risco de transmissão para adoção das medidas de prevenção e controle. Já o controle químico do vetor resume-se na aplicação periódica de inseticidas de ação residual no extra, peri e intradomicílio dos imóveis das áreas com maior risco de transmissão, conforme definições do Ministério da Saúde. Essa ação tem o intuito de reduzir a população dos insetos vetores da LV e, consequentemente, reduzir o contato desses com os seres humanos.

5.5. Educação em saúde: as atividades de educação em saúde também devem estar inseridas em todos os serviços que desenvolvem as ações de controle da LV, requerendo o envolvimento efetivo das equipes multiprofissionais e multi-institucionais com vistas ao trabalho articulado nas diferentes unidades de prestação de serviços, por meio de: divulgação à população sobre a ocorrência da LV na região, alertando sobre os sinais clínicos e os serviços para o diagnóstico e tratamento; capacitação das equipes, englobando conhecimento técnico, aspectos psicológicos e prática profissional em relação à doença e aos doentes; adoção de medidas preventivas considerando o conhecimento da doença, atitudes e práticas da população, relacionada às condições de vida e trabalho das pessoas; estabelecimento de relação dinâmica entre o conhecimento do profissional e a vivência dos diferentes estratos sociais através da compreensão global do processo saúde/doença, no qual intervêm fatores sociais, ambientais, econômicos, políticos e culturais.

5.6. Medidas de proteção individual: uso de mosquiteiro com malha fina, telagem de portas e janelas, uso de repelentes; não exposição em horários de atividade do vetor (crepúsculo noite) em ambientes onde habitualmente pode ser encontrado;

5.7. Saneamento ambiental: manejo ambiental, por meio da limpeza de quintais, terrenos e praças públicas, a fim de alterar as condições do meio que propiciem o estabelecimento de criadouros de formas imaturas do vetor. Medidas básicas como limpeza urbana, eliminação e destino adequado dos resíduos sólidos orgânicos, eliminação de fonte de umidade, não permanência de animais domésticos dentro de casa, entre outras, contribuem para evitar ou reduzir a proliferação do vetor.

5.8. Doação de cães: em áreas com transmissão de LV humana ou canina é recomendado que, previamente à doação de cães, seja realizado o exame sorológico canino. Caso o resultado seja sororreagente, medidas de vigilância e controle deverão ser adotadas, conforme preconizado pelo Ministério da Saúde.

5.9. Vacinas: Não existem vacinas contra a LV para humanos. Atualmente existe uma vacina antileishmaniose visceral para cães registrada e comercializada no Brasil. Segundo o Ministério da Saúde e o Mapa, o produto é o único até o momento que atendeu às exigências da Instrução Normativa Interministerial n° 31 de 09 de julho de 2007. Todavia, não há constatação de sua efetividade e custoefetividade para o controle da leishmaniose visceral canina e humana em programas de saúde pública. Dessa forma, o seu uso está restrito à proteção individual dos cães e não como uma ferramenta de Saúde Pública. Destaca-se ainda que; conforme disposto na Instrução Normativa interministerial nº 31, de 9 de julho de 2007, Art. 6º,§ 7º; esse imunobiológico está indicado somente para animais assintomáticos com resultados sorológicos não reagentes para leishmanioses visceral, e portanto, não deve ser utilizado para o tratamento de animais doentes. Cabe destacar que a vacina não é o único instrumento de prevenção individual da leishmaniose visceral canina (LVC) e que outras medidas devem ser adotadas, conforme normatização do Ministério da Saúde.

5.10. Uso de telas em canis individuais ou coletivos: os canis de residências e, principalmente, os canis de pet shops, clínicas veterinárias, abrigo de animais, hospitais veterinários e os que estão sob a administração pública devem obrigatoriamente utilizar telas do tipo malha fina, com objetivo de evitar a entrada de flebotomíneos e, consequentemente, impedir o contato desses insetos com os cães;

5.11. Coleiras impregnadas com deltametrina a 4%: São produtos que possuem o efeito repelente e inseticida de flebótomos. Estudo financiado pelo Ministério da Saúde demonstrou que o encoleiramento de cães em massa com essa ferramenta foi efetivo e custo-efetivo na redução da prevalência e incidência da infecção de cães pela L. infantum em áreas com alta transmissão da doença no Brasil. O estudo demonstrou também a efetividade dessa estratégia na redução da incidência da doença em humanos. Nesse contexto, o Ministério da Saúde decidiu por incorporar essa ferramenta para o uso no Sistema Único de Saúde a partir do ano de 2019, visando ao controle da LV em cães e humanos em municípios com alta transmissão.

5.12. Outros produtos repelentes de flebotomíneos: Além das coleiras impregnadas com deltametrina a 4%, existem outros produtos comercializados no Brasil que possuem o efeito repelente de flebotomíneos. No entanto, não existem estudos que comprovem suas efetividades e custo-efetividades na redução da prevalência e incidência da infecção de cães pela L. infantum e da doença em humanos no Brasil. Nesse contexto, esses produtos estão recomendados atualmente apenas como medida de proteção individual para os cães contra picadas de flebotomíneos, e não como uma medida de Saúde Pública.

  1. Considerações Finais

Considerando que a LV é uma antropozoonose de transmissão vetorial urbana, que envolve uma complexidade de fatores no seu ciclo de transmissão, considera-se que o seu controle é um grande desafio Brasil. As tecnologias em saúde atualmente existentes não são suficientemente efetivas para um controle avançado dessa enfermidade. Nesse contexto, o enfrentamento desse grave problema de saúde pública carece de esforços intersetoriais e interdisciplinares das áreas da saúde animal, humana e do meio ambiente.

Dessa forma, salienta-se a responsabilidade do médico veterinário para o avanço nas estratégias de vigilância e controle da doença no País. O protagonismo desses profissionais, sejam eles clínicos, patologistas, professores, pesquisadores, sanitaristas, etc., é decisivo para uma abordagem efetiva no controle da LV.

Diante desse cenário, é primordial que o Sistema CFMV/CRMVs promova ações e discussões constantes e periódicas com os médicos veterinários sobre a vigilância e controle da LV.

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