Procura-se um companheiro fiel

“A bengala é um símbolo
muito forte da deficiência visual”, diz a advogada Thays Martinez, de 35
anos. “Tinha a sensação de que as pessoas me olhavam como se eu fosse uma
coitadinha.” Há uma década, Thays se livrou do peso emocional da bengala e
adotou algo bem mais simpático para lhe abrir caminhos: um cão-guia. Boris,
um cruzamento das raças labrador e golden retriever, revelou não ser um
cachorro comum. “O dia mais feliz da minha vida foi quando caminhamos por uma
trilha ecológica, sem o estresse de bater nas coisas e sem a companhia de
outra pessoa. “Nunca tinha me sentido tão livre”, diz Thays. A parceria com
Boris não só elevou a autoestima de Thays como mudou seu destino.
Em 2002, a
advogada fundou o Instituto de Responsabilidade e Inclusão Social (Iris), uma
ONG que trabalha para os deficientes visuais. Vinte dos cerca de 60 cães-guia
em atividade no país foram importados pelo Iris, sem nenhum custo para os
usuários, graças a uma parceria com a ONG americana Leader Dogs for the
Blind. “Temos 2 mil deficientes na fila de espera por um cão”, diz Thays.
Basher, um labrador amarelo, chegou ao Brasil no fim do ano passado. “Foi
como se eu tivesse tido um filho. Nunca tinha me sentido tão feliz”, diz
Daniela Ferrari Kovacs, de 29 anos. “As pessoas sempre cuidaram de mim. Eu
não sabia que também seria capaz de cuidar de outro ser.” Basher e Dani fazem
sucesso por onde passam. Na rua, pedestres param para tirar dúvidas sobre o
trabalho do cão ou para elogiar a beleza dele – ou a dela. Alguns cometem o
erro de tentar chamar a atenção de Basher colocando em risco a segurança de Dani.
Com um sorriso no rosto e a voz doce, ela explica: “Ele é um cão-guia, não
pode se distrair”. A chegada do cão fez com que as pessoas se aproximassem
mais de Dani, e de maneira mais cordial. Enquanto ela dá expediente no
Tribunal Regional do Trabalho, na região central de São Paulo, Basher repousa
sobre um colchãozinho colorido atrás da mesa. A cada três horas, Dani desce
com ele ao “banheiro”. Carrega um saquinho plástico para eventuais resíduos.
Basher é um cão chique: é bilíngue (atende a comandos em inglês e português),
viaja de avião, vai ao cabeleireiro, à academia e à terapia. “Se eu soubesse
que um cão-guia melhoraria tanto minha vida, teria procurado um muito antes”,
diz Dani.
No momento, o Iris busca voluntários para o trabalho de socialização dos cães
e recursos de parceiros com dois objetivos: montar um centro de treinamento
completo em São Paulo
e importar animais para começar uma linhagem de cães-guia brasileiros. Outro
problema, ainda sem solução, é que há poucos treinadores para os animais. A
formação dos treinadores é muito complexa, dura cerca de quatro anos e, tanto
quanto o Iris saiba, existem apenas três profissionais especializados em
cães-guia no Brasil – um para cada escola existente no país.
Treinar um cão-guia é uma tarefa cara (R$ 20 mil) e complexa. O processo é
dividido em três etapas. Primeiro, o filhote passa ao menos um ano com uma
família voluntária, que tem o dever de ensiná-lo a se comportar bem em
qualquer ambiente. Depois, fica de três a cinco meses na escola para aprender
o trabalho de guia – como andar em linha reta, parar ao se aproximar do meio
fio ou de escadas e desviar de obstáculos. Só na terceira fase o cão é
apresentado ao deficiente visual, e os dois treinam juntos. Para que a
parceria dê certo, o perfil do cão tem de combinar com o do dono. Um guia
muito ativo se ajusta melhor a um usuário que não fique muito parado. Alguém
apressado pode não se adaptar a um cão-guia com passadas lentas. De acordo
com o Ministério da Saúde, há mais de 550 mil cegos e 3,1 milhões de pessoas
com baixa visão no Brasil. “Considerando a proporção de deficientes visuais
que usam cães-guia no exterior, nossa demanda é de mais de 10 mil cães”,
afirma Moisés Vieira Júnior, diretor técnico e treinador do Iris. A relação
entre deficientes visuais e cães-guia é antiga. A primeira tentativa
sistemática de treinamento teria ocorrido no fim do século XVIII, no hospital
parisiense Les Quinze-Vingts. Durante a Primeira Guerra Mundial, cães
começaram a ser treinados na Alemanha para guiar soldados que ficaram cegos.
De lá para cá, muitas escolas foram abertas pelo mundo. As mais tradicionais
selecionam geneticamente matrizes de labrador, golden retriever e
pastor-alemão. Dessas raças, ou do cruzamento entre elas, saem os animais
mais adequados ao trabalho de guia.
Coisas simples para quem enxerga como ir à padaria ou dar uma volta sozinho
no quarteirão, são importantes para um deficiente visual. No caso de Thays,
foi o cão quem lhe deu segurança para deixar a casa dos pais e ir morar
sozinha. E se encher de coragem para largar a estabilidade do emprego no
Ministério Público e se dedicar a outras áreas do Direito. A relação com
Boris motivou Thays a processar o Metrô de São Paulo, que proibiu o cão de
guiá-la dentro da área da empresa. E a batalhar pela aprovação de duas leis –
uma estadual e outra federal – que permitiram o acesso de cães-guia a locais
públicos.
No ano passado, Thays notou que chegara a hora de aposentar Boris. Ele já não
tinha a energia de antes. Depois de uma longa caminhada pela Avenida
Paulista, Boris se jogou no chão para descansar. Em outra ocasião, Thays
bateu o rosto numa escada por desatenção dele. “Foi uma decisão muito
dolorosa”, afirma Thays. “Quando Diesel (o guia substituto) chegou, Boris
começou a me ignorar e ficou meio deprimido. Eu pegava a coleira para sair,
os dois vinham querendo colocá-la.” Há duas semanas, Boris, de 10 anos, se
mudou para a casa de uma amiga de Thays. Parece satisfeito.

Fonte: Revista Época, Edição de 12/06/2009

Relacionadas

Imagem de freepik
Imagem de mulher sorridente segurando telefone ao lado dos dizeres: Semana do Zootecnista. Inscreva-se.
homem careca de cavanhaque usando jaleco branco e escrevendo em uma pasta, dentro de um curral.
mão colocando envelope rosa dentro de uma urna de votação de papelão.

Mais Lidas

Diagnóstico por imagem é uma das especialidades reconhecidas pelo CFMV
Crédito: Acervo CRMV-SP
Notebook com a tela inicial da Solução Integrada de Gestão do CRMV-SP (SIG CRMV-SP)
Responsável técnico é a figura central que responde ética, legal e tecnicamente pelos atos profissionais da empresa
Crédito: Freepik
Em São Paulo, a primeira instituição destinada ao ensino da Veterinária teve origem no Instituto de Veterinária, nas dependências do Instituto Butantan, no ano de 1919 Crédito da foto: Acervo Histórico/FMVZ-USP

Contato

(11) 5908 4799

Sede CRMV-SP 

Endereço: Rua Apeninos, 1.088 – Paraíso – CEP: 04104-021
Cidade: São Paulo

Newsletter

Todos os direitos reservados ao Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo – CNPJ: 50.052.885/0001-40