Série Zoonoses: Psitacose para profissionais

PSITACOSE

O tráfico de animais silvestres é a terceira maior atividade ilícita no mundo, e as aves têm sido as mais utilizadas, devido à crescente preferência como animal de companhia, motivo de grande discussão. Apesar do interesse na preservação das diferentes espécies, há enorme preocupação com a saúde desses animais como transmissores de doenças aos seres humanos. Conhecida como clamidiose, psitacose, ornitose ou febre dos papagaios, é causada pela bactéria intracelular Chlamydia psittaci, que apresenta duas formas infectantes distintas: Corpo Elementar (CE), que é expelida nas fezes e secreções; e Corpo reticular (CR), que se multiplica dentro das células da ave. A clamidiose é considerada a principal zoonose transmitida por aves silvestres, particularmente por psitacídeos e columbiformes. No Brasil, estudos recentes têm mostrado sua ampla ocorrência em aves silvestres e ocasionais surtos em humanos; em 85% destes casos confirma-se o contato direto com pássaros e em 15% não se registra qualquer tipo de contato com esses animais. Em virtude da dificuldade de diagnóstico, a freqüência que a psitacose ocorre é subestimada.

ETIOLOGIA

A C. psittaci é uma bactéria intracelular que apresenta um ciclo de desenvolvimento completo em 48 horas pós-infecção, constituído por duas formas distintas, o corpo elementar (CE) e o corpo reticular (CR). O CE é a forma infectante, persistente no meio ambiente e metabolicamente inerte; o CR apresenta metabolismo ativo intracelular. São conhecidos atualmente seis sorotipos de Chlamydia psittaci: o sorotipo A, peculiar entre psitaciformes e responsável pela infecção sistêmica, podendo causar doença em humanos; o sorotipo B, de maior importância em pombos, identificado também em outras espécies; os sorotipos C, D e E, que não tem hospedeiros aviários específicos, porém os dois primeiros são de risco, como doença ocupacional em funcionários de granjas e de abatedouros avícolas. O sorotipo F foi isolado apenas em periquitos. Diferem quanto à virulência, podendo o hospedeiro ser infectado ao mesmo tempo por diferentes sorotipos.

TRANSMISSÃO

A doença é enzoótica entre as aves, dada à condição criatória em grandes grupos aglomerados promovendo a transmissão por ingestão ou inalação do agente, por contato direto com secreções e/ou excreções contaminadas de aves doentes ou portadoras. A infecção também pode ocorrer no ninho, quando os pais regurgitam para os filhotes alimentos contendo células infectadas provenientes da descamação do epitélio do inglúvio. A transmissão vertical pelo ovo, embora possível, ainda não foi confirmada.

Os CEs possuem baixa resistência a desinfetantes, calor e luz solar, porém se mantêm por longos períodos em água a temperatura ambiente e podem ainda sobreviver por meses à dissecação ou à luz solar se protegidos em restos de penas e resíduos, e virem a contaminar comedouros, bebedouros, ou permanecerem como poeira fecal em gaiolas e espaços públicos, sendo transmitidos por aerossóis. A transmissão da C. psittaci ao homem ocorre principalmente pelo manuseio de penas, fezes secas e tecidos infectados, que predispõem à inalação do microrganismo; assim como o contato direto com secreção respiratória de aves infectadas e pelo contato boca-bico. Pássaros recém-adquiridos representam importante fonte de infecção, pois a doença nesses animais pode ser induzida por situações de estresse, como fome, superlotação, transporte e maus tratos. O contágio entre humanos é possível. Os grupos de risco para a doença compreendem pessoas com contato próximo com aves: proprietários de aves de companhia, trabalhadores em criação de aves comerciais ou em linhas de processamento de carne, indivíduos que trabalham em lojas que comercializam aves, técnicos e médicos-veterinários. A Chlamydia psittaci pode também infectar bovinos, ovinos e caprinos, causando infecção crônica no aparelho reprodutivo, insuficiência placentária e aborto nesses animais, mas a contaminação humana pela ingestão da carne infectada é rara

MANIFESTAÇÕES CLÍNICAS EM AVES E EM SERES HUMANOS

O período de incubação varia entre alguns dias a semanas, e os sinais clínicos estão na dependência da virulência do agente e via de transmissão, da espécie, idade e da condição criatória da ave, estado imunológico, e eventual presença de infecções simultâneas. Exposição a fatores estressantes, associados ao manejo impróprio, como má nutrição, excesso populacional, transporte inadequado e remoção do habitat natural promovem o aparecimento do quadro clínico. Sinais como depressão, emaciação, plumagem eriçada, tremores, letargia, anorexia, desidratação, blefarite, ceratoconjuntivite, sinais respiratórios, digestórios, urinários, urato verde-amarelado (típico de envolvimento hepático), neurológicos e óbito são observados. Conjuntivite, muitas vezes recorrente, pode ser o único sinal clínico aparente; às vezes, ocorre a morte súbita sem sinais prévios. As aves doentes que se recuperaram ou mesmo portadoras assintomática podem excretar de forma intermitente e por longo período de tempo a bactéria nas fezes ou secreções oronasais, contaminando o ambiente, e colocando em risco outras aves de estimação e os seres humanos.

Em seres humanos, após o período de incubação de 5-15 dias, iniciam-se os sintomas brandos, inespecíficos, lembrando infecção de vias aéreas superiores. Febre alta (39oC), tosse seca, dispnéia, cefaléia, calafrios, mialgias e em alguns casos hepato e esplenomegalia. Surge ainda dor em região escapular que pode evoluir para dor torácica ventilatório-dependente e taquipnéia progressiva. Distúrbios gastro-gastrintestinal com vômitos, diarréia, anorexia e dor abdominal difusa; e neurológicos cerebelares, mielite transversa, meningite, confusão mental, hipertensão intracraniana, síndrome de Guillain-Barré, paralisia de pares cranianos já foram descritos. Entretanto, a psitacose é raramente uma doença sistêmica grave e fulminante. A psitacose/ornitose é considerada doença profissional ou doença relacionada ao trabalho, do Grupo I da Classificação de Schilling, nos trabalhadores de granjas e criadores de aves (patos, gansos, periquitos, pombos, etc.), empregados de casas de comércio desses animais, veterinários, guardas florestais e outros de exposição ocupacional.

DIAGNÓSTICO

O diagnóstico de clamidiose aviária é bastante complexo e deve ser baseado na associação do exame clínico e laboratorial: bacteriológico, sorológico e histopatológico. O isolamento a partir de amostras clínicas é considerado o método de referência para o diagnóstico da clamidiose, entretanto, diante das dificuldades operacionais face ao potencial zoonotico (patógenos nível 3), é realizado apenas em laboratórios contemplados com normas de biossegurança rigorosa. Swabs de conjuntiva, orofaringe, cloaca, esfregaços de fezes ou biópsia de fígado de aves suspeitas; ou amostras de fígado, baço, pulmões e rins de animais necropsiados devem ser inoculados em 2 ou 3 passagens consecutivas em cultura de células de linhagens McCoy, HeLa, Vero (African Green Monkey), L929 e BGM (Buffalo Green Monkey) ou no saco vitelino de ovos embrionados. A coleta de várias amostras deve ser realizada de 3 a 5 dias consecutivos, em animais vivos, antes da administração de antibióticos, a fim de aumentar a possibilidade de detecção do agente. Após o isolamento, a presença do microrganismo é confirmada por técnicas de coloração e/ou imunofluorescência, nas quais são identificados corpos de Levintal-Collie-Lilie. Testes de ELISA (Enzyme Linked Immunosorbet Assay), IFA (Immunofluorescent Antibody Tests) empregando anticorpos monoclonal ou policlonal para detecção de clamídias, de componentes antigênicos ou de anticorpos específicos frente àqueles componentes antigênicos são empregados, com a vantagem de não requerem a viabilidade da bactéria. Contudo, podem apresentar resultados falso-positivos com bactérias gram-negativas. Resultados falso-negativos podem ocorrer quando a excreção da bactéria é intermitente, recomendando-se colheitas sucessivas de swabs cloacais e não de fezes. Amostras clínicas com presença de Staphylococcus aureus, Actinobacillus salpingitidis e Acinetobacter calcoaceticum podem culminar em resultados falso-positivos. Ave sem sintomas aparentes que apresenta resultado positivo, a associação de exames diagnósticos está indicada, incluindo-se o isolamento e a técnica de reação em cadeia da polimerase (PCR). A PCR utilizando-se amostras de swabs de fezes, coana e cloaca, e de tecidos são fundamentais no diagnóstico laboratorial de Chlamydiacea. A rapidez e a não necessidade de grande número e da viabilidade da bactéria são enormes vantagens no diagnóstico de doenças zoonóticas. Diante de formas clínicas variáveis, o diagnóstico diferencial de clamidiose com outros agentes sistêmicos e causas tóxicas devem ser realizados. Da mesma forma, o diagnóstico humano baseia-se nos dados clínico-epidemiológicos e sorológico, por meio da Fixação de Complemento (FC) e/ou Elisa. A quadruplicação dos títulos de anticorpos entre a fase aguda e a convalescença, em amostras intervaladas entre 2 a 3 semanas, confirma o diagnóstico em até 94% dos casos. A FC é gênero-específica e não distingue C. psittaci de C.trachomatis ou C. pneumoniae, podendo haver reações cruzadas e, portanto, falsos-positivos. Exames bacteriológicos de secreções pulmonares podem ser tentados, porém com as mesmas dificuldades acima descritas; preferindo-se a PCR. No exame radiográfico, observa-se pneumonia com consolidação de um lobo, mas pode haver padrão intersticial ou miliar com ou sem derrame pleural. Diagnóstico diferencial da psitacose com outras causas de pneumonia atípica por Mycoplasma pneumoniae, Chlamydia pneumoniae e Legionella pneumophila deve ser realizado. Na presença de reações cutâneas o diagnóstico diferencial com febre tifóide também é recomendado.

Quando da suspeita de doenças em aves, deve se procurar o Ambulatório de Ornitopatologia da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da USP, Av. Prof. Dr. Orlando Marques de Paiva, 87, Cidade Universitária, São Paulo,SP.

Os casos suspeitos humanos podem ser encaminhados para o serviço do Ambulatório de Zoonoses do Instituto de Infectologia Emilio Ribas, São Paulo-SP; localizado a Av. Dr. Arnaldo no.165, tel: 3896-1200 (PABX), Prédio dos Ambulatórios, sob responsabilidade do Dr. Marcos Vinicius da Silva (marcos.silva@emilioribas.sp.gov.br ou mvsilva@pucsp.br, as consultas poderão ser agendadas por telefone ou no site do hospital).

TRATAMENTO

Aves infectadas devem ser tratadas com tetraciclina ou doxiciclina pelo período de 45 dias, conforme indicação do médico-veterinário. O tratamento deve ser feito com rigor, pois, se não for eficaz, a ave pode continuar eliminando a bactéria pelas fezes ou secreções.

A antibioticoterapia nos seres humanos deve ser instituída e continuada conforme prescrição médica, para que sejam evitados os casos graves, as complicações e principalmente as recidivas. Após o início do tratamento, os sintomas tendem a regredir em 24 a 48 horas, embora a melhora possa ser lenta em alguns casos.

PAPEL DO MEDICO VETERINARIO NA PREVENÇÃO E CONTROLE

Educação sanitária alertando para o risco de transmissão de doenças por aves, coibindo a venda e compra de animais clandestinos e a instituição de regulamentação do processo de importação de aves são fundamentais para o combate à ocorrência da psitacose/ornitose. Instruir para que não haja aquisição de aves clandestinas, em estradas ou lojas e pet shoppings não legalizados no CFMV/CRMVs. Aves suspeitas devem ser avaliadas por médico-veterinário e realizado o tratamento adequado e todas as medidas de limpeza da gaiola e do ambiente durante o tratamento. As aves devem ser retestadas e, em alguns casos, o sacrifico é uma opção de controle.

Os proprietários deverão ser encaminhados aos órgãos oficiais de saúde. Aves recém-chegadas aos criadouros ou propriedade particulares devem ser submetidas à quarentena em lugares separados, até a avaliação clínica veterinária e aos testes laboratoriais preconizados. Medidas de prevenção e controle são fundamentais em criatórios, granjas e abatedouros, objetivando limitar a disseminação do agente, diminuir o impacto da doença à saúde pública e os prejuízos econômicos para o produtor. Aos funcionários de criatórios, granjas e abatedouros, o RT veterinário deverá verificar o fornecimento de EPI e do cumprimento pela empresa de medidas de controle dos fatores de risco ocupacionais e promoção da saúde identificados no PPRA (NR 9) e no PCMSO (NR 7) e outros regulamentos sanitários e ambientais dos estados e municípios. Na confirmação de doença ocupacional, a empresa empregadora deverá ser imediatamente informada, dando início à identificação de outros casos. Na sequência, deverá proceder à notificação aos sistemas de informação de saúde e ao sindicato da categoria, como DOENÇA RELACIONADA AO TRABALHO, os quais orientarão ao empregador para adoção de recursos técnicos e gerenciais adequados para eliminação ou controle dos fatores de risco.

A Clamidiose consta da lista de doenças notificáveis da Organização Mundial para a Saúde Animal (OIE), 2013, que em seu Código para a Saúde Animal Terrestre, traz recomendações quanto à importação de aves da família Psittacidae, com apresentação de certificado veterinário internacional que ateste que as aves não apresentam sinal clínico de Clamidiose. No Brasil, o procedimento para importação de aves ornamentais e seus ovos férteis para qualquer fim consta da IN 17, de agosto de 2010, do Ministério de Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA).

Como medidas preventivas gerais, o profissional deverá instruir para que não ocorra elevada densidade de aves nos criatórios e gaiolas; para o que ambiente seja limpo e bem ventilado; para que não se misture aves de várias procedências, proteger os alimentos e rações animais do acesso de outras aves, principalmente de pombos da rua; evitando também que estes tenham contato com animais domésticos; realizar a limpeza de forros, calhas ou qualquer outro local que apresente fezes de pássaros, restos de ninhos ou penas. Jamais remover a sujeira a seco, deve-se sempre adotar um meio de umedecê-la antes, para evitar a inalação de poeira contaminada. Sempre utilizar luvas e máscara.

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