A poluição plástica já ultrapassou os limites do que é visível e tornou-se uma ameaça concreta à vida marinha no Brasil e no mundo. Sacolas, garrafas, canudos, redes de pesca descartadas e, especialmente, microplásticos, têm causado mortes silenciosas nos oceanos, afetando diretamente a fauna marinha e, de forma indireta, a saúde humana e o equilíbrio dos ecossistemas.
Não por acaso, a Organização das Nações Unidas (ONU) escolheu como tema da Semana do Meio Ambiente 2025: “O fim da poluição plástica global”, com o objetivo de chamar a atenção para a necessidade de reduzir drasticamente a produção e o consumo de plásticos descartáveis e promover soluções sustentáveis.
Nesse contexto, médicos-veterinários, zootecnistas e instituições de conservação ambiental desempenham um papel fundamental na linha de frente do resgate, reabilitação e monitoramento da fauna afetada, além de atuarem como agentes de conscientização. Esses profissionais alertam para a urgência de ações educativas, políticas públicas eficazes e mudanças de comportamento, que envolvam não apenas governos e empresas, mas também cada cidadão, no compromisso com a preservação dos oceanos e da vida.
Animais confundem resíduos com alimento, o que leva à obstrução do trato digestivo, inanição e, muitas vezes, à morte. Também são frequentes os casos de emaranhamento em redes e outros materiais plásticos, que provocam ferimentos graves e dificultam a locomoção, resultando em sofrimento prolongado. “Esse cenário é cada vez mais comum nos ecossistemas aquáticos”, diz a médica-veterinária Elma Polegato, presidente do Grupo de Trabalho sobre Destinação de Resíduos Gerados nas Atividades Agropecuárias do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMV-SP).
Dados da organização Oceana revelam que o Brasil produziu, em um único ano, 6,67 milhões de toneladas de plástico, sendo 2,95 milhões de uso único (87% embalagens e 13% produtos descartáveis). O consumo desses itens ultrapassa 500 bilhões de unidades por ano. Em 2018, o País gerou 10,1 milhões de toneladas de resíduos plásticos, das quais 325 mil toneladas foram parar no mar. Em limpezas de praias, 70% do material coletado é plástico.
Fauna em sofrimento
Nesse contexto, a atuação de médicos-veterinários especializados em fauna silvestre tem sido fundamental. Instituições como o Instituto Argonautas, Projeto Tamar, Instituto Gremar, Instituto Biopesca e o Instituto de Pesquisa Cananéia realizam o monitoramento diário das praias paulistas e prestam atendimento clínico a animais marinhos afetados pela poluição.
“Há casos de animais que chegam aos centros de reabilitação com grandes quantidades de microplásticos no trato digestivo, o que provoca distúrbios intestinais severos”, relata Renata Hurtado, médica-veterinária do Instituto de Pesquisa Cananéia.
Cláudia Nascimento, coordenadora do Projeto de Monitoramento de Praias, complementa que “os animais resgatados passam por avaliação clínica, cirurgias quando necessário e são preparados para retornar à vida livre.”
Entenda os riscos
Entre 2015 e 2019, foram realizadas 29 mil necrópsias de aves, répteis e mamíferos marinhos nas regiões Sul e Sudeste do Brasil. Em 3.725 casos, foram identificados detritos não naturais no trato digestivo, sendo 50% deles plástico. Entre os animais afetados, estavam:
- 197 mamíferos marinhos, incluindo duas espécies ameaçadas;
- 573 aves marinhas, também com duas espécies ameaçadas;
- 2.955 tartarugas marinhas, abrangendo cinco espécies ameaçadas.
Segundo a organização Oceana, um em cada 10 animais que ingeriram plástico morreu, evidenciando o impacto letal da poluição plástica sobre a biodiversidade marinha.
Além dos danos à fauna, os microplásticos representam um risco crescente à saúde humana. A abordagem da Uma Só Saúde — que integra os campos da saúde animal, humana, ambiental e vegetal — é essencial para compreender a dimensão e as consequências desse problema global.
“O ser humano está sendo diretamente afetado pela ingestão de microplásticos ao consumir peixes e frutos do mar”, alerta Marta Guimarães, médica-veterinária do Ambulatório de Aves da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (FMVZ-USP).
Problema global
Estudos internacionais já identificaram a presença de microplásticos em diversos alimentos marinhos consumidos pelo ser humano, como peixes vendidos em mercados da Califórnia e até em ostras, pepinos-do-mar e ouriços nas Ilhas Galápagos. No Brasil, diversas regiões já foram mapeadas com altas concentrações desses resíduos nos ecossistemas aquáticos, o que reforça a urgência de ações coordenadas.
Além do impacto nos mares, a agropecuária também é uma das principais fontes geradoras de resíduos plásticos. De acordo com dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO/ONU), de 2021, a agricultura e a pecuária são responsáveis por cerca de 10,2 milhões de toneladas de plásticos por ano em todo o mundo. Esses materiais estão presentes em embalagens de defensivos, seringas, frascos, lonas, equipamentos de contenção e uma ampla gama de insumos utilizados no manejo animal e na produção agrícola.
Nesse cenário, médicos-veterinários e zootecnistas também assumem um papel educativo e preventivo. “É essencial orientar tutores e produtores sobre o descarte adequado, a separação de resíduos e a adoção de práticas como a logística reversa para materiais como seringas e medicamentos”, destaca Elma Polegato, médica-veterinária e presidente do Grupo de Trabalho sobre Resíduos do CRMV-SP.
Diante desse desafio, o Grupo de Trabalho de Resíduos e a antiga Comissão de Saúde Ambiental do CRMV-SP já desenvolveram manuais, adesivos e folders com diretrizes para o gerenciamento de resíduos na saúde e produção animal. Atualmente, esse tema está incorporado às ações da Comissão de Uma Só Saúde, reforçando a importância de abordagens interdisciplinares para alcançar mudanças significativas e sustentáveis.
Caminhos futuros
Apesar da complexidade dos desafios, o enfrentamento da poluição plástica depende de dois pilares fundamentais: inovação tecnológica e mudança de comportamento. Tecnologias voltadas à reciclagem de materiais de uso veterinário e agropecuário, como seringas e embalagens, já começam a ser implementadas, mas ainda enfrentam barreiras logísticas, econômicas e culturais.
“Mesmo os plásticos biodegradáveis devem ser corretamente descartados”, alerta Elma Polegato, destacando que a substituição de materiais não é suficiente sem uma gestão adequada de resíduos.
A urgência de ações eficazes está diretamente ligada aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU. Entre eles:
- ODS 14: visa conservar e utilizar de forma sustentável os oceanos e recursos marinhos — diretamente ameaçados pela poluição plástica, que compromete espécies e cadeias alimentares;
- ODS 12: propõe padrões sustentáveis de consumo e produção, um ponto crítico para a agropecuária e a saúde animal, ainda responsáveis por grandes volumes de resíduos plásticos;
- ODS 13: convoca ações contra as mudanças climáticas, reconhecendo que a degradação ambiental e a poluição por plásticos contribuem para desequilíbrios nos ecossistemas e no clima global.
Diante desse cenário, o engajamento interprofissional e social é indispensável. Médicos-veterinários, zootecnistas, produtores rurais, gestores públicos e a população em geral têm papel ativo na transformação de práticas e na adoção de soluções sustentáveis.
