Leptospirose: para profissionais da saúde

A leptospirose é uma enfermidade causada por bactérias do gênero Leptospira composto de cerca de 250 sorovariedades (sorovares) com diferente patogenicidade, que acomete animais domésticos e silvestres e seres humanos de forma acidental. Provavelmente é uma das zoonoses de maior distribuição geográfica, evidenciada em mais da metade dos países, endêmica na América Latina e no Caribe, com impacto na saúde pública e na economia agropecuária. No Brasil, a leptospirose humana é uma doença endêmica, com registro em todas as unidades da federação. Segundo estimativa da Fundação Nacional da Saúde, a Funasa (http://www.funasa.gov.br), anualmente são registrados cerca de 10 mil casos de leptospirose com surtos epidêmicos na época das chuvas, onde 80% são devidos a Leptospira interrogans sorovar Copenhageni.

Sua ocorrência está estreitamente vinculada às condições ambientais, que podem dar lugar a um foco de infecção de amplitude variável e que se repete em ciclos. As leptospiras podem permanecer viáveis em água limpa por até 152 dias, mas não toleram alta salinidade, dessecação, pH ácido e a competição bacteriana em meios muito contaminados. Sem dúvida a água das chuvas é ideal para a sua sobrevivência.

EPIDEMIOLOGIA

Na área urbana, a leptospirose humana torna-se epidêmica em períodos chuvosos quando ocorrem enchentes e cheias de rios e córregos, principalmente nas cidades com más condições de saneamento básico, com esgoto a céu aberto e lixões, os quais propiciam a contaminação da água com urina de roedores (ratazanas, ratos de telhado e camundongos). Os roedores são assintomáticos e os principais transmissores da leptospirose por excretarem a bactéria pela urina por praticamente toda vida. Infelizmente, o risco não desaparece depois que o nível das águas baixa, pois a bactéria continua ativa nos resíduos úmidos durante bastante tempo. Os animais domésticos se contaminam pelo contato com urina de roedores no ambiente domiciliar e passam a ser os principais responsáveis pela transmissão da leptospirose aos seres humanos. Na zona rural, as características do ambiente e a presença de roedores e animais silvestres (mamíferos, aves, répteis e anfíbios) portadores ou reservatórios de leptospiras assumem grande importância na transmissão da leptospirose para as espécies produtivas (bovinos, bubalinos, ovinos, caprinos, eqüinos e suínos). Urina, fetos abortados, placenta, descargas cervico-vaginais e sêmen são as principais vias de eliminação, mantendo a doença endêmica no rebanho ou região. O sêmen de machos infectados se constitui em importante via de eliminação de leptospiras e a cópula representa um mecanismo de contágio direto. Já as leptospiras que contaminam componentes do ambiente tais como: aguadas, tanques, bebedouros, alimentos, rações e fômites, como vagina artificial contaminada, são transmitidas aos hospedeiros suscetíveis por mecanismos de contágio indireto. As portas de entrada para as leptospiras invadirem o organismo dos hospedeiros são pele lesada ou íntegra e membranas mucosas, como conjuntiva, nasofaríngea e genital.

Ainda nas propriedades rurais, a infecção humana ocorre de forma acidental pelo contato com excretas, carcaças animais e restos de tecidos e de fetos abortados infectados. Práticas errôneas, como a presença de cães junto aos rebanhos, os quais têm acesso à excretas dos animais e ao feto abortado, alimentando-se de restos placentários e fetais, ricos em leptospiras, podem fechar o ciclo de transmissão tanto para o homem quanto para o próprio rebanho.

As maiores sequelas da leptospirose e que se constituem em problemas para o diagnóstico são a localização e a persistência de leptospiras nos rins e no trato genital de fêmeas e machos infectados, os quais podem se manter portadores assintomáticos por anos ou pela vida toda e servirem de reservatório para outros animais e o homem.

Algumas profissões estão particularmente expostas, como trabalhadores em esgotos, lixeiros, mineiros, bombeiros, agricultores expostos a plantação de cana-de-açúcar e arrozais, granjeiros, magarefes de abatedouros, tratadores de animais de produção e de canis, e médicos-veterinários. Estes últimos se constituem no principal grupo de risco ocupacional no mundo, principalmente na lida com rebanhos bovinos leiteiros e granjas produtoras de suínos.

Há ainda a possibilidade do homem se infectar em atividades recreativas e de lazer, embora menos frequente e puramente acidental, ao banhar-se em rios, riachos, lagos e mananciais que recebem dejetos de animais. Ou na prática de atividades esportivas em ambientes contaminados, como em pescarias e praticantes de esportes radicais realizados em locais onde coabitam animais silvestres e roedores. O conhecimento da severidade da infecção, da distribuição geográfica, dos fatores de risco envolvidos e das estirpes de leptospiras circulantes é de extrema importância para o estabelecimento da epidemiologia regional desta enfermidade e o aprimoramento de medidas preventivas.

Manifestações Clínicas

As manifestações clínicas na leptospirose variam com a espécie e o sorovar infectante. Nos cães, há diversos sinais clínicos, com ou sem icterícia, dependendo do sorovar. Na atualidade, no Brasil, nos grandes centros urbanos os sorovares que tem sido os principais responsáveis pelos casos de leptospirose em cães são Copenhageni e Canicola. Na forma aguda, o cão pode apresentar febre, letargia, depressão, anorexia, vômito, diarréia, poliúria, polidipsia, halitose, úlceras bucais, dor abdominal e/ou lombar, mialgias, icterícia, petéquias e sufusões em mucosas e conjuntivas, hemorragias. A morte ocorre por insuficiência renal e hepática. A bactéria se multiplica ativamente nos diferentes órgãos parenquimatosos, sangue, linfa e líquor; atinge o endotélio vascular originando vasculite generalizada. Após essa fase, pode permanecer nos túbulos contornados renais e ser eliminada pela urina, de forma intermitente (leptospirúria), desde 72 horas após a infecção por até semanas a meses.

Nas espécies de animais de produção, a leptospirose se constitui na maioria das vezes em enfermidade reprodutiva responsável pela baixa produção de leite e carne, em função da ocorrência de mastites, da infertilidade, do abortamento e do nascimento de animais fracos, causando enormes prejuízos aos rebanhos. Se o médico-veterinário de inspeção de abate estiver atento às lesões, poderá rastrear as informações de origem para detectar o foco ou rebanho infectado. Nos equinos, manifesta-se tanto como doença sistêmica quanto reprodutiva na dependência do sorovar infectante. A Iridociclite recidivante ou panoftalmia periódica decorrentes de reação de hipersensibilidade do tipo III, frequente nos equinos, pode evoluir para a cegueira.

O homem que lida diretamente com as criações pode ser infectado a partir do contato com animais doentes ou portadores assintomáticos que excretam de forma intermitente a bactéria pela urina. Diante dos primeiros sintomas, o médico deve ser sempre procurado. O paciente deve lembrar de informar os antecedentes de contato com águas de enchentes e animais de companhia ou de produção, pois, a partir destas informações, juntamente com o quadro clínico e os exames laboratoriais, é que se estabelece o diagnóstico. A leptospirose humana pode se manifestar de forma leve ou moderada, também denominada anictérica, ou severa e fatal, forma ictérica. O período de incubação varia de dois a 30 dias, os sintomas iniciais são semelhantes aos da gripe, febre amarela, dengue, malária, hantavirose e hepatites. Febre alta repentina, mal-estar, dores musculares, especialmente na panturrilha, de cabeça e no tórax, olhos vermelhos, tosse, cansaço, calafrios, náuseas, diarréia, desidratação e exantemas podem estar associados à leptospirose. Em 10% dos casos, observa-se a forma grave, síndrome de Weil, causada pelos sorovares Icterohaemorrhagiae e Copenhageni, com letalidade média de 9%, onde são observados icterícia, por insuficiência hepática, manifestações hemorrágicas (equimoses, sangramentos em nariz, gengivas e pulmões) e comprometimento dos rins. A evolução para o coma e a morte ocorre em cerca de 10% das formas graves, entre elas a pulmonar humana, onde se observam dispnéia, tosse, hemoptóicos, hemoptise que rapidamente evoluem para insuficiência respiratória aguda caracterizada por hemorragia pulmonar maciça. Dentre as outras complicações destacam-se as hemorragias graves, insuficiência renal aguda, pancreatite aguda, arritmias cardíacas, miocardite, rabdomiólise, insuficiência cardíaca congestiva, e meningite. Envolvimento cardíaco é um quadro provavelmente mais comum do que relatado, assim como a uveíte, uma importante complicação tardia que pode causar cegueira reversível ou irreversível também em humanos. Alguns sintomas cedem em 3-4 dias, reaparecendo posteriormente com o agravamento do quadro clínico. Entre os casos confirmados, o indivíduos do sexo masculino, com faixa etária entre 20 e 49 anos, estão entre os mais atingidos. Embora não exista predisposição de gênero ou de idade para contrair a infecção.

Diagnóstico

O diagnóstico da leptospirose não é fácil, pois os sinais clínicos variam nas diversas espécies e conforme o sorovar infectante, e a suspeição clínica depende das informações epidemiológicas. Os exames laboratoriais são fundamentais para a elucidação do diagnóstico. Podem ser inespecíficos (hemograma, tempo de protrombina, provas de função hepática e renal) e específicos, que se baseiam na identificação do agente etiológico (diretos) e detecção de anticorpos circulantes (indiretos). Basicamente pode ser usado o cultivo bacteriano de amostra de sangue, líquor e urina nos seres humanos e cães; e nos animais de produção urina, sêmen, fetos abortados (órgãos e conteúdo gástrico) e anexos. Porém, os resultados demoram e tem baixa sensibilidade em detectar o agente. A PCR e a PCR em tempo real, embora mais caros, são rápidos, altamente sensíveis e específicos, e ainda apresentam a vantagem de não exigirem a viabilidade da bactéria. O diagnóstico sorológico pela reação de soroaglutinação microscópica, técnica de referência animal e humana, é rápida e de baixo custo, com alta sensibilidade e especificidade. Em humanos, devem ser colhidas duas amostras sequenciais com intervalo de sete a 21 dias, considerando-se positivo título maior ou igual a 800 em uma única amostra ou quando houver a quadruplicação do título quando forem colhidas duas amostras de soro com intervalo de 10 a 15 dias. A sorologia negativa na fase inicial não exclui doença, já que os anticorpos começam a ser produzidos a partir da segunda semana. Outros métodos ainda utilizados incluem ELISA IgG e IgM. O diagnóstico humano nem sempre alcança êxito devido ao baixo índice de suspeita clínica, e deve ser diferenciado de outras doenças endêmicas ou freqüentes na região onde ocorrem os casos e com sintomas similares.

Amostras de soro pareadas, colhidas com intervalos de 20-30 dias são importantes para se estabelecer o diagnóstico de rebanho. Título 100 pode indicar infecção inicial; animal negativo que soroconverte ou a quadruplicação de títulos nesse intervalo indicam infecção em curso. O provável sorovar infectante é o que aparece em maior titulo e maior freqüência no rebanho. Animais portadores assintomáticos podem ser soronegativos, mas excretores de leptospiras pela urina. O emprego de métodos laboratorias associados auxilia muito o diagnóstico. O diagnóstico diferencial da leptospirose animal deve levar em conta outras enfermidades reprodutivas.

Tratamento e métodos de prevenção e controle

Quanto antes for instituído o tratamento da leptospirose, menor será a chance de quadros graves. A antibioticoterapia na infecção humana é controversa. Alguns estudos compararam a utilização de antibióticos com a não utilização, e demonstraram a ausência de diferença no tempo de recuperação dos pacientes. Porém, há estudos que demonstraram a eficácia da aplicação de antibióticos durante os primeiros dias da leptospirose. Em pacientes em estado avançado da doença, a administração de antibióticos apresenta alta eficácia e redução nos índices de mortalidade. Na doença aguda e de curso moderado, é recomendado o uso de doxiciclina, ampicilina e amoxicilina, e na avançada e grave, o uso de penicilina G e ampicilina. Alguns países possuem vacinas para a prevenção da leptospirose humana, mas ainda são pouco seguras e faltam pesquisas nesta área. Em cães, o tratamento deve contemplar a inativação do agente pela antibioticoterapia com penicilina e ampicilina e a manutenção e restabelecimento das funções hepática e renal. Nos animais de produção, diante de focos ou preventivamente, a di-hidroestreptomicina IM está indicada.

No Brasil, as vacinas animais se constituem em cultivos de vários sorovares inativados que atuam preventivamente contra a doença clínica; são sorovar específicas, portanto não protegem contra a infecção por outros sorovares não constantes na formulação. O animal previamente exposto à infecção e vacinado não fica protegido de se tornar portador renal, se não tratado, constituindo-se em excretor do agente pela urina e disseminador da doença. A anti-ratização e desratização devem ser empregadas sempre que necessárias onde houver criação de animais domésticos ou de produção.

O papel do médico-veterinário na orientação de medidas preventivas e profiláticas aos tutores de animais domésticos e criadores em canis, assim como responsáveis técnicos pela gestão sanitária de rebanhos, é fundamental.

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